Daqueles breves e ingênuos encontros em maio de 2008, no bairro São Lucas, não se podia sequer supor, à partir de onde estávamos, até onde poderíamos chegar. E soma-se a tudo isso aquilo que se iniciou 30 anos antes, em 1978, quando assisti o filme Guerra nas estrelas, fato decisivo para o meu interesse sempre renovado pelo estudo e prática da astronomia, observando planetas, cometas e utilizando telescópios. O que se segue descrito abaixo foi quase um milagre. Algo difícil de narrar mas que não escapa ao sentimento mais profundo.
Naquelas observações em 2008, a cada céu contemplado, a cada telescópio adquirido, a cada objeto identificado, estava sendo construída uma experiência tão rara quanto chuva torrencial no deserto. E poucas pessoas no universo puderam viver isso. Ao longo de todo o ano de 2009 vasculhávamos o céu identificando seus objetos, um a um, refinando apontamentos e equipamentos. Decodificavamos a Lua em suas primeiras crateras de onde surgiu nosso primeiro super mapa, de alta qualidade, da superfície lunar. Crateras como Tycho, Nicollet e Copernicus. Ou Archimedes, Cassini e Plato. Mare Crisium, Mare Serenitatis e Mare Frigores: esses nomes todos se sentaram à nossa mesa para um banquete astronômico. Era apenas, e tão somente apenas, o início dessa lendária parceria astronômica.
O primeiro super mapa: o início das descobertas lunares
Então chegaram os primeiros telescópios refratores de alta performance: os apocromaticos. E com eles, em 2010, o primeiro LPOD (Lunar Photo Of the Day): a Lua do Brasil era destaque na América do Norte. Algo surpreendente dadas as limitações tupiniquins. Surgia algo made in Brazil nos céus belohorizontinos. Veio, ainda, uma entrevista, ao vivo, com um jornalista na Austrália. Havíamos chegado no outro lado da Terra. Cometas e Lua. Galáxias e Lua. Planetas e Lua. Nebulosas e Lua. Entramos, por gravidade, em " órbita " lunar de onde surgiu o Vaz Tolentino Observatório Lunar, o VTOL, referência internacional em fotografia do relevo da Lua, dentre demais assuntos em selenografia.
O site da Lua: referência internacional
Mas as conquistas se expandiram e alcançaram mares nunca antes navegados. Pude conhecer pessoas absurdamente incríveis como Orlando, Laper e Alair, e ver surgir ao que foi chamado de Passaporte para Astronomia, que brotou de onde nem havia, sequer, uma graduação em Física. E mais, viabilizaria o Encontro Nacional de Astronomia, ENAST, em 2015, realizado com pompa e circunstância, ineditamente, por uma universidade.
ENAST 2018: um marco para a cidade de Belo Horizonte
Mas dentre tantas coisas inusitadas, teve uma essencialmente emblemática: a chegada de um telescópio apocromático de 4 polegadas, em 2011. Era algo que só se via em catálogos internacionais. Tão raro e caro como uma jóia e seus muitos diamantes. E tal situação me pôs a pensar o restante daquele ano: o que significava aquilo e todas aquelas conquistas? Me vieram à mente os textos socialistas de Jean Paul Sartre, sobre o papel do intelectual e que apontavam para uma sociedade compartilhada. Todas essas conquistas eram como um presente, uma dádiva. Era um sinal de mudança. Era necessário compartilhar. Pela primeira vez, na minha simples vida, eu estava apto para compartilhar algo. E não poderia perder essa rara e única oportunidade até então.
Um Apo na minha cozinha: a surpreendente chegada desse super equipamento
O ano de 2012 começou com uma conversa entre eu e o diretor da escola estadual do meu bairro. Consolidamos o Projeto Lunar, que levaria, a todas as turmas do período noturno, astronomia observacional lunar com alguns outros complementos. Ao longo de seis meses, de abril a setembro de 2012, eu levava os equipamentos para a escola, no período de Lua crescente, para mostrar o céu aos adolescentes que nunca haviam tido contato, sequer, com um binóculo. Participei, também, em alguns eventos, em uma escola estadual no bairro da Serra.
Astronomia na escola: a formação começa cedo
Mas a energia inicial desse big bang do encontro com o Ricardo ainda nos guardava mais e mais surpresas. Passei, a partir de então, a compartilhar um olhar para o social. Eu nunca havia feito isso! Mas, naquele contexto, me vi capaz e fiz. A música, minha principal função, ainda não havia entrado em cena. Juntamente com a comunidade, montamos então um curso, em parceria com a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que ao longo de 2013, ensinou música às crianças e adolescentes carentes da comunidade.
Projeto da CNBB: música de graça pelo social
Mas não parou por aí. Em 2014 passei a participar da mesa do Conselho local de saúde, para representar e defender os usuários do SUS. Ajudei a fundar o MORA BH, associação para lutar por moradia a quem precisa. Entrei com um grupo novo para reabilitar a associação de moradores do bairro. Promovemos doação de roupas aos mais carentes. Representei o bairro na conquista do projeto de ampliação e reforma do centro de saúde pelo Orçamento Participativo. Encaminhei pessoas em vulnerabilidade social ao Bolsa Família, ao CRAS (Centro de Referência e Assistência Social) e à gratuidade no transporte coletivo. Fiz atendimento às crianças, cujos lares foram desfeitos por fatores de agravamento social, em indicação pelo Conselho Tutelar.
E ainda: havia mais por fazer, algo maior e mais inusitado. Foi quando, imerso em todos esses acontecimentos, resolvi voltar à escola. Eu faria uma licenciatura em educação musical para socializar o que eu tinha de mais valioso: a música. Nada disso existia antes do "efeito" Ricardo cruzar o meu caminho. Uma vida foi refeita, integralmente.
De volta à escola: a música não poderia ficar de fora
E, ao cumprir meu estágio curricular em licenciatura nas escolas carentes, nessa periferia do bairro onde moro, percebi que tudo se fecha, se completa, como em um círculo. É como fazer todas aquelas conquistas, lá de atrás, circular, socializar. É quando se percebe que o "eu", caprichosamente, cede espaço ao "nós". E ninguém sabe o que vai ser daqui em diante. As coisas passaram a caminhar por vontade própria. Aquela energia inicial, lá de 1978, renovada em 2008, ainda circula, indefinidamente, em outras esferas, por novos caminhos, desse imprevisível e misterioso futuro.
Fica aqui, então, o meu muito obrigado, por tudo, Ricardo.